CYNARA MENEZES free-lance para a Folha de S.Paulo
Fônico - Enfatiza as relações símbolo-som. Há duas "correntes".
Na sintética, o aluno conhece os sons representados pelas letras e combina esses sons para pronunciar palavras.
Na analítica, o aluno aprende primeiro uma série de palavras e depois parte para a associação entre o som e as partes das palavras. Pode utilizar cartilhas.
Linguagem total ("whole language")Defende que os sistemas linguísticos estão interligados, e que a segmentação em imagens ou sons deve ser evitada. Os estudantes são apresentados a textos inteiros, já que acredita-se que "se aprende lendo". Em sala de aula, o professor lê textos para os alunos, que acompanham a leitura com o mesmo texto, assim se "familiarizando" com a linguagem escrita. A partir dessa familiarização, vão aprendendo palavras e, depois, as sílabas e as letras. Não utiliza cartilhas.
Orientação dos PCNsDiagnóstico prévio do aluno antes de optar por qualquer método. Algumas crianças entram na primeira série sabendo ler. O professor lê textos em voz alta e é acompanhado pela classe, que tem em mãos os mesmos textos. Os alunos são estimulados a copiar textos com base em uma situação social pré-existente: por exemplo, eles ouvem poesias e compõem, por cópia ou colagem, seus cadernos de poemas favoritos. A leitura em voz alta por parte dos estudantes é substituída por encenações de situações que foram lidas, desenhos que ilustram os trechos lidos etc. As crianças aprendem a escrever em letra de forma; a consciência fônica é uma consequência. Não utiliza cartilhas.
Alfabético - Os alunos primeiro identificam as letras pelos seus nomes, depois soletram as sílabas e, em seguida, as palavras antes de lerem sentenças curtas e, finalmente, histórias. Quando os alunos encontram palavras desconhecidas, as soletram até decodificá-las. Pode utilizar cartilhas.
Analítico - Também conhecido como método "olhar-e-dizer", começa com unidades completas de linguagem e mais tarde as divide em partes. Exemplo: as sentenças são divididas em palavras, e as palavras, em sons. O "Orbis Sensualium Pictus" é considerado o primeiro livro escolar importante. Abaixo das gravuras estavam os nomes impressos para que os estudantes memorizassem as palavras, sem associá-las a letras e sons. Pode utilizar cartilhas.
Sintético - Começa a ensinar por partes ou elementos das palavras, tais como letras, sons ou sílabas, para depois combiná-los em palavras. A ênfase é a correspondência som-símbolo. Pode utilizar cartilhas.
Organizando as classes de alfabetização: Processos e métodos
MARIA DAS GRAÇAS DE CASTRO BREGUNCI1
A metodologia da alfabetização: trajetória de alguns princípios permanentes
Mudanças conceituais ocorridas no campo da alfabetização trazem, como conseqüência, mudanças nas decisões metodológicas e nos procedimentos didáticos a ela relacionados. Como a ampliação do conceito de alfabetização vem sendo objeto desta série de textos, o foco desta abordagem será a caracterização do estado atual da discussão sobre a metodologia da alfabetização como base para uma reflexão sobre a organização do trabalho nessa área.
Historicamente, as discussões sobre a alfabetização escolar, no Brasil, se centraram na eficácia de processos e métodos, prevalecendo, até os anos 80, uma polarização entre processos sintéticos e analíticos, direcionados ao ensino do sistema alfabético e ortográfico da escrita.
Os primeiros métodos aplicados ao ensino da língua escrita pertencem a uma vertente que valoriza o processo de síntese. Nela se incluem os métodos de soletração, o fônico, o silábico, tendências ainda fortemente presentes nas propostas didáticas atuais. Tais métodos privilegiam os processos de decodificação, as relações entre fonemas (sons ou unidades sonoras) e grafemas (letras ou grupos de letras) e uma progressão de unidades menores (letra, fonema, sílaba) a unidades mais complexas (palavra, frase, texto). Embora focalizem capacidades essenciais ao processo de alfabetização – sobretudo a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema convencional da escrita – tais métodos, quando utilizados parcialmente e de forma exclusiva, apresentam limitações: não exploram as complexas relações entre fala e escrita, suas semelhanças e diferenças; além disso, pela ênfase que atribuem à decodificação, resultam, muitas vezes, em propostas que descontextualizam a escrita, seus usos e funções sociais, enfatizando situações artificiais de treinamento de letras, fonemas ou sílabas.
Outra vertente de métodos valoriza o processo de análise e a compreensão de sentidos, propondo uma progressão diferenciada: de unidades mais amplas (palavra, frase, texto) a unidades menores (sílabas ou sua decomposição em grafemas e fonemas). São exemplos dessa abordagem os métodos de palavração (palavra decomposta em sílabas), de sentenciação (sentenças decompostas em palavras) e o global de contos (textos considerados como pontos de partida, até o trabalho em torno de unidades menores) – tendências que também persistem nas práticas docentes atuais. Esses métodos contemplam algumas das capacidades essenciais ao processo de alfabetização – sobretudo o estímulo à leitura de unidades com sentido, pelo reconhecimento global das mesmas. Entretanto, quando incorporados de forma parcial e absoluta, acabam enfatizando construções artificiais e repetitivas de palavras, frases e textos, muitas vezes apenas a serviço da repetição e da memorização, com objetivo de manter controle mais rígido da seqüência do processo e das formas de interação gradual da criança com a escrita.
Nas últimas três décadas assistiu-se a um abandono dessa discussão sobre a eficácia de processos e métodos de alfabetização, que passaram a ser identificados como propostas “tradicionais ” ou excessivamente diretivas. Passou a ocupar lugar central a discussão sobre a psicogênese da aquisição da escrita, uma abordagem de grande impacto conceitual no campo da alfabetização, sistematizada por Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) e vários outros teóricos e pesquisadores. Tais mudanças conceituais, traduzidas no ideário “Construtivista ”, reverteram a ênfase anterior no método de ensino para o processo de aprendizagem da criança que se alfabetiza e para suas concepções progressivas sobre a escrita, entendida como um sistema de representação. Além disso, passou-se a valorizar o diagnóstico dos conhecimentos prévios dos alunos e a análise de seus erros como indicadores construtivos de seus processos cognitivos e hipóteses de aprendizagem. Outra implicação fundamental passou a ser o deslocamento da ênfase anterior na alfabetização para uma valorização do ambiente alfabetizador e do conceito mais amplo de letramento – já definido, nesta série, como a progressiva inserção da criança em práticas sociais e materiais reais que envolvem a escrita e a leitura. Embora tais contribuições tenham se incorporado como conquistas importantes na trajetória da alfabetização escolar, alguns problemas e dilemas se instalaram a partir da excessiva centração nas dimensões conceituais, em detrimento da sistematização metodológica do ensino desse objeto em construção. Como afirma SOARES (2002), a ênfase na faceta psicológica da alfabetização obscureceu sua faceta lingüística fonética e fonológica; além disso, a ênfase na dimensão do letramento obscureceu a dimensão da alfabetização como processo de aquisição do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica.Desafios atuais quanto às escolhas metodológicas para a alfabetização
À luz desses dilemas, como poderia ser encaminhada, atualmente, a discussão sobre uma didática da alfabetização? Embora a questão metodológica não possa merecer o pesado tributo de responsável exclusiva pelo nosso fracasso em alfabetizar, certamente seu lugar é considerável e necessita ser redimensionado. Nas últimas décadas, não apenas as mudanças conceituais em torno da alfabetização ampliaram seu significado, como também novos problemas e exigências se agregaram ao trabalho nesse campo pedagógico. O momento exige a superação de polarizações entre caminhos ou movimentos exclusivos e a busca de equilíbrio de princípios metodológicos que são considerados permanentes, indispensáveis e indissociáveis como dimensões constitutivas e simultâneas da alfabetização e do letramento: a) os princípios de decodificação e de organização do sistema alfabético-ortográfico da escrita, incluindo o domínio das relações entre fonemas e grafemas, das regularidades e irregularidades ortográficas; b) os princípios de compreensão, reconhecimento global e construção de sentidos em contextos de usos sociais da escrita e da leitura; c) os princípios pertinentes à progressão das capacidades das crianças, nos diversos campos já descritos em textos anteriores, com ênfase em intervenções didáticas que propiciem avanços de aprendizagem.
A multiplicidade de métodos e sua combinação simultânea em função dos diversos momentos do ensino inicial da escrita e da leitura é, atualmente, uma tendência internacional. Um bom ponto de partida consiste em reconhecer, portanto, as deficiências de cada proposta e identificar os princípios permanentes que devem ser preservados e articulados simultaneamente. Mas a escolha do “melhor ” método não poderá ser parcial e exclusiva, devendo se regular por vários critérios: a) a integração de princípios teórico-metodológicos já sugeridos pela produção teórica e pela pesquisa nessa área; b) o apoio em livros e materiais didáticos que ajudem a sistematizar, de forma coerente e consistente, o trabalho pedagógico em torno da alfabetização; c) a socialização de experiências ou práticas de sucesso de alfabetizadores; d) o diagnóstico dos processos vivenciados pelos alunos, para adequadas escolhas quanto às intervenções necessárias às suas progressões.
Percebe-se, assim, que as decisões metodológicas relacionadas à alfabetização extrapolam a mera escolha de métodos: envolvem um conjunto de procedimentos pertinentes à preparação da escola e à organização das classes de alfabetização, ao estabelecimento de planejamentos e de rotinas necessários à implementação de um ambiente alfabetizador. Esses serão os focos do próximo tópico.
O planejamento e a organização do trabalho em torno da alfabetização
As dimensões e os conteúdos pertinentes à alfabetização passaram por ampliações progressivas, cada vez mais complexas, como se vem enfatizando ao longo dessas reflexões. Trata-se, hoje de um campo que recebe contribuições de diversas ciências e de linhas de pesquisa cada vez mais valorizadas do ponto de vista político e pedagógico. Por isso mesmo, tal processo não pode ser conduzido de forma aleatória e assistemática, limitado a vivências espontâneas dos alunos ou a práticas solitárias dos professores. É nesse sentido que emerge a importância do planejamento da organização das classes de alfabetização e do trabalho didático a ser desenvolvido. O planejamento é o instrumento, por excelência, capaz de assegurar o diagnóstico das capacidades e conhecimentos prévios dos alunos, as metas e meios para a sistematização de aprendizagens e práticas de ensino, os instrumentos de avaliação do processo e a elaboração de novas estratégias para a solução de problemas detectados. Exige não só esforço docente individual como também trabalho coletivo e compartilhado; assim, o planejamento estabelece princípios de reciprocidade de cada profissional com seus pares, possibilitando a consolidação da autonomia dos professores e a progressiva reconstrução do projeto pedagógico da própria escola.
Alguns requisitos são fundamentais em um planejamento efetivamente voltado para a sistematização do trabalho em torno da alfabetização:
a) criar condições e tempos escolares destinados ao planejamento, ao diagnóstico, à avaliação e à reelaboração de propostas, buscando-se a progressiva institucionalização de espaços coletivos tais como seminários ou semanas de planejamento, de integração com a comunidade, de escolha de livros didáticos, entre outras possibilidades;
b) estabelecer e compartilhar metas e objetivos, envolvendo professores, alunos e pais, nos processos de sua avaliação e de sua reorientação;
c) definir meios para alcançar objetivos, organizar o processo, registrar e socializar atividades realizadas.
Além da definição de objetivos e metas, é necessário investir nos meios para sua implementação. A organização das atividades em torno da alfabetização deverá levar em conta:
a) a progressão de níveis do trabalho pedagógico, em função dos níveis de aprendizagem dos alunos e da natureza das atividades, envolvendo conceitos e procedimentos pertinentes aos diversos componentes do aprendizado da língua escrita: a compreensão e a valorização da cultura escrita, a apropriação do sistema de escrita, a oralidade, a leitura e a produção de textos escritos. Dependendo do nível atingido pela classe, por grupos ou duplas de alunos, todo o planejamento poderá ser reorientado, em busca de outras alternativas de métodos, de materiais didáticos e de reagrupamento de alunos, sempre tendo como meta mais ampla sua progressiva autonomia em relação aos usos da língua escrita.
b) a criação de um ambiente alfabetizador, ou de um contexto de cultura escrita oferecido pelas formas de organização da sala e de toda a escola, capaz de disponibilizar aos alunos a familiarização com a escrita e a interação com diferentes tipos, gêneros, portadores e suportes, nas mais diversas formas de circulação social de textos. A exposição de livros, dicionários, revistas, rótulos, publicidade, notícias do ambiente escolar e de periódicos da comunidade ou do município, cartazes, relatórios, registros de eleições e muitas outras possibilidades permitem a inserção dos alunos em práticas sociais de letramento, ultrapassando formas artificiais de etiquetagem ou de treinamento da escrita em contextos estritamente escolares.
c) o estabelecimento de rotinas diárias e semanais, capazes de oferecer ao professor um princípio organizador de seu trabalho, desde que atenda a dois critérios essenciais: a variedade e a sistematização. Uma rotina necessita, em primeiro lugar, propiciar diversificação de experiências e ampliação de contextos de aplicação. Em segundo lugar, precisa oferecer um contexto de previsibilidade de atividades, para que os próprios alunos se organizem, consolidem aprendizagens e avancem em seus espaços de autonomia. Nesse sentido, pode ser bastante produtiva a previsão diária e semanal de atividades voltadas para os eixos da leitura, da escrita, da oralidade, das atividades lúdicas e especializadas, levando em conta o melhor momento de sua inserção (início, meio ou final do turno) e a melhor configuração grupal para sua realização (grupos que se familiarizam com determinados conteúdos ou grupos que já se encontram em patamares mais consolidados de aprendizagem). Essa flexibilidade pode conferir maior potencial à proposição de rotinas, como elementos que ajudam o professor a melhor conhecer seus alunos e a monitorar as modificações necessárias para que o planejamento inicial não se desencaminhe das metas mais relevantes inicialmente projetadas.
Palavras finais
Este texto se centrou na caracterização do atual estado da discussão sobre a metodologia da alfabetização, a partir de uma revisão das concepções historicamente produzidas em torno de processos e métodos, apontando confrontos, lacunas e permanências de alguns princípios já consolidados na área. A intenção central foi a de estimular uma reflexão em direção ao equilíbrio, à integração e à articulação de propostas metodológicas que possam dar conta da complexidade da alfabetização e das progressivas exigências em torno de seu ensino. Como conseqüência dessa proposta, um segundo nível de discussão se voltou para a necessidade de preparação efetiva da escola e da sala de aula para a alfabetização, através de um planejamento criterioso dos ambientes de alfabetização e das rotinas necessárias no trabalho cotidiano de professores e alunos. Dessa forma, pretendeu-se alargar o próprio conceito de método, entendido, nesta abordagem, como um conjunto de procedimentos e de vários níveis de decisão responsáveis pela sistematização, na escola fundamental, da tarefa de alfabetizar e letrar nossas crianças.
A reinvenção da alfabetização
Magda Soares*
Vou tentar aqui defender a especificidade da alfabetização e a sua importância na escola, ao
lado do letramento.
O que poderíamos chamar de acesso ao mundo da escrita – num sentido amplo – é o processo
de um indivíduo entrar nesse mundo, e isso se faz basicamente por duas vias: uma, através do
aprendizado de uma "técnica". Chamo a escrita de técnica, pois aprender a ler e a escrever
envolve relacionar sons com letras, fonemas com grafemas, para codificar ou para decodificar.
Envolve, também, aprender a segurar um lápis, aprender que se escreve de cima para baixo e
da esquerda para a direita; enfim, envolve uma série de aspectos que chamo de técnicos. Essa
é, então, uma porta de entrada indispensável.
A outra via, ou porta de entrada, consiste em desenvolver as práticas de uso dessa técnica. Não
adianta aprender uma técnica e não saber usá-la. Podemos perfeitamente aprender para que
serve cada botão de um forno de microondas, mas ficar sem saber usá-lo. Essas duas
aprendizagens – aprender a técnica, o código (decodificar, usar o papel, usar o lápis etc.) e
aprender também a usar isso nas práticas sociais, as mais variadas, que exigem o uso de tal
técnica – constituem dois processos, e um não está antes do outro. São processos simultâneos e
interdependentes pois todos sabem que a melhor maneira para aprender a usar um forno de
microondas é aprender a tecnologia com o próprio uso. Ao se aprender uma coisa, passa-se a
aprender a outra. São, na verdade, processos indissociáveis, mas diferentes, em termos de
processos cognitivos e de produtos, como também são diferentes os processos da alfabetização
e do letramento.
Que significa isso? Significa que a alfabetização, aprendizagem da técnica, domínio do código
convencional da leitura e da escrita e das relações fonema/grafema, do uso dos instrumentos
com os quais se escreve, não é pré-requisito para o letramento.
Não é preciso primeiro aprender a técnica para depois aprender a usá-la. E isso se fez durante
muito tempo na escola: "primeiro você aprende a ler e a escrever, depois você vai ler aqueles
livrinhos lá". Esse é um engano sério, porque as duas aprendizagens se fazem ao mesmo
tempo, uma não é pré-requisito da outra.
Mas, por outro lado, se a alfabetização é uma parte constituinte da prática da leitura e da escrita,
ela tem uma especificidade, que não pode ser desprezada. É a esse desprezo que chamo de
"desinventar" a alfabetização. É abandonar, esquecer, desprezar a especificidade do processo
de alfabetização. A alfabetização é algo que deveria ser ensinado de forma sistemática, ela não
deve ficar diluída no processo de letramento. Acredito que essa é uma das principais causas do
que vemos acontecer hoje: a precariedade do domínio da leitura e da escrita pelos alunos.
Estamos tendo a prova disso através das avaliações nacionais. O último SAEB mostrou um
resultado terrível: aproximadamente 33% dos alunos com quatro anos de escolaridade ainda são
analfabetos.
Quais são as causas dessa perda da especificidade da alfabetização? É muito difícil analisar os
fatos recentes, por um lado, por estarmos participando do processo; por outro, temos de fazê-la
porque a questão é grave. Não podemos deixar esses milhões de alunos, crianças e jovens,
saírem da escola semi-alfabetizados, quando não saem analfabetos.
O que poderíamos levantar como hipótese? Primeiro, uma concepção de alfabetização que,
coincidentemente, chegou ao País na mesma época que o conceito de letramento, nos anos 80;
segundo, uma nova organização do tempo da escola, que consiste na divisão em ciclos,
trazendo junto a questão da progressão continuada – da não-reprovação.
Essa concepção de alfabetização está, de certa maneira, associada ao construtivismo. Não
estou afirmando que essa concepção seja errada, mas a maneira como ela se difundiu no
sistema é que pode ser uma das causas da perda de especificidade do processo de
alfabetização. A mudança conceitual que veio dos anos 80 fez com que o processo de
construção da escrita pela criança passasse a ser feito pela sua interação com o objeto de
conhecimento. Interagindo com a escrita, a criança vai construindo o seu conhecimento, vai
construindo hipóteses a respeito da escrita e, com isso, vai aprendendo a ler e a escrever numa
descoberta progressiva.
O problema é que, atrelada a essa mudança de concepção, veio a idéia de que não seria preciso
haver método de alfabetização. A proposta construtivista é justa, pois é assim mesmo que as
pessoas aprendem, não apenas a ler e escrever, mas é assim que se aprende qualquer coisa:
interagindo com o objeto de conhecimento. Mas os métodos viraram palavrões. Ninguém podia
mais falar em método fônico, método silábico, método global, pois todos eles caíram no
purgatório, se não no inferno. Isso foi uma conseqüência errônea dessa mudança de concepção
de alfabetização. Por equívocos e por inferências falsas, passou-se a ignorar ou a menosprezar
a especificidade da aquisição da técnica da escrita. Codificar e decodificar viraram nomes feios.
"Ah, mas que absurdo! Aprender a ler e escrever não é aprender a codificar e decodificar".
Aí é que está o erro. Ninguém aprende a ler e a escrever se não aprender relações entre
fonemas e grafemas – para codificar e para decodificar. Isso é uma parte específica do processo
de aprender a ler e a escrever. Lingüisticamente, ler e escrever é aprender a codificar e a
decodificar.
Esse modo de ver as coisas fez com que o processo de ensinar a ler e escrever como técnica
ficasse desprestigiado. As alfabetizadoras que ficam pelejando com os meninos para eles
aprenderem a ler e escrever são vistas como retrógradas e ultrapassadas. Mas, na verdade, elas
estão ensinando aquilo que é preciso ensinar: codificar e decodificar. As alfabetizadoras podem
até estar ensinando pelos caminhos inadequados, mas isso precisa ser feito.
Nas concepções anteriores, as alfabetizadoras tinham um método – fosse esse ou aquele – que
vinha concretizado na chamada cartilha, acompanhado de um manual do professor (da
alfabetizadora) dizendo detalhadamente o que ela deveria fazer. Não estou discutindo a
impropriedade dos fundamentos dessa cartilha, seja do ponto de vista lingüístico, seja do ponto
de vista da própria escrita, dos gêneros de escrita, do tipo de texto etc. Mas era isso que as
professoras tinham. Não tinham uma teoria, porque aquele método era tudo: se adotassem o
silábico, mantinham-se no silábico, pois não tinham uma teoria lingüística ou psicológica que
justificasse ser aquele o melhor método ou aquela a melhor seqüência de aprendizado. A
verdade era exclusivamente o que dizia a cartilha. Havia um método, mas não uma teoria. Hoje
acontece o contrário: todos têm uma bela teoria construtivista da alfabetização, mas não têm
método. Se antigamente havia método sem teoria, hoje temos uma teoria sem método. E é
preciso ter as duas coisas: um método fundamentado numa teoria e uma teoria que produza um
método.
Existe também a falsa inferência de que, se for adotada uma teoria construtivista, não se pode
ter método, como se os dois fossem incompatíveis. Ora, absurdo é não ter método na educação.
Educação é, por definição, um processo dirigido a objetivos. Só vamos educar os outros se
quisermos que eles fiquem diferentes, pois educar é um processo de transformação das
pessoas. Se existem objetivos, temos de caminhar para eles e, para isso, temos de saber qual é
o melhor caminho. Então, de qualquer teoria educacional tem de derivar um método que dê um
caminho ao professor. É uma falsa inferência achar que a teoria construtivista não pode ter
método assim como é falso o pressuposto de que a criança vai aprender a ler e escrever só pelo
convívio com textos. O ambiente alfabetizador não é suficiente.
Minha hipótese é a seguinte: o construtivismo – aliás, o construtivismo constitui uma teoria mais
complexa do que a que está presente no senso comum – nos trouxe algo que não sabíamos.
Permitiu-nos saber que os passos da criança, em sua interação com a escrita, são dados numa
direção que permite a ela descobrir que escrever é registrar sons e não coisas. Então, a criança
vai viver um processo de descoberta: escrevemos em nossa língua portuguesa e em outras
línguas de alfabeto fonético registrando o som das palavras e não aquilo a que as palavras se
referem. A partir daí a criança vai passar a escrever abstratamente, colocando no papel as letras
que ela conhece, numa tentativa de, realmente, escrever "casa", sem o recurso de utilizar
desenhos para dizer aquilo que quer. Então, depois que a criança passa pela fase silábica para
registrar o som (o som que ela percebe primeiro é a sílaba), ela vai perceber o som do fonema e
chega o momento em que ela se torna alfabética.
Esse foi um grande esclarecimento proporcionado pelo construtivismo. Só que, quando a criança
se torna alfabética, está na hora de começar a entrar no processo de alfabetização, de aprender
a ler e a escrever. Por quê? Porque quando se torna alfabética, surge o problema da
apropriação, por parte da criança, do sistema alfabético e do sistema ortográfico de escrita, os
quais são sistemas convencionais constituídos de regras que, em grande parte, não têm
fundamento lógico algum. E a criança tem de aprender isso. Ela tem de passar por um processo
sistemático e progressivo de aprendizagem desse sistema. Nesse campo, a grande colaboração
é da Lingüística, ao tratar das relações entre sistema fonológico e sistema ortográfico. Assim
podemos determinar qual é o melhor caminho para a criança se apropriar desses sistemas e de
suas relações.
É a isso que eu chamo da especificidade do processo de alfabetização. Não basta que a criança
esteja convivendo com muito material escrito, é preciso orientá-la sistemática e
progressivamente para que possa se apropriar do sistema de escrita. Isso é feito junto com o
letramento. Mas, em primeiro lugar, isso não é feito com os textos 'acartilhados' – "a vaca voa,
ivo viu a uva" –, mas com textos reais, com livros etc. Assim é que se vai, a partir desse material
e sobre ele, desenvolver um processo sistemático de aprendizagem da leitura e da escrita.
Essa aprendizagem não está acontecendo. Visito muitas escolas e tenho visto o que está de fato
acontecendo. Além disso, venho acompanhando nos testes – SIMAVE, SAEB e outros – o
fracasso, a falta de orientação sistemática da criança para se apropriar do sistema de escrita.
Quando digo que se "desinventou" a alfabetização, é a essa falta de especificidade da
alfabetização que me refiro. Um sistema convencional tem de ser aprendido de forma
sistemática. Desde que a criança tenha descoberto que o sistema é alfabético, está apta a
aprender esse sistema. E acaba aprendendo porque, felizmente, criança é bastante esperta. Mas
ela leva muito mais tempo para aprender, e enfrenta muito mais dificuldades, se deixarmos que o processo ocorra de maneira aleatória e esparsa.
A Lingüística fornece elementos para se saber como devem ser trabalhadas essas
correspondências fonema/grafema com a criança. Quando isso não é observado, o resultado é o
fracasso em alfabetização, sob nova vestimenta. Não estou dizendo que o fracasso de agora
seja novidade, pois sempre tivemos fracassos em alfabetização. Antes, a criança repetia a
mesma série por até quatro vezes e havia o problema da evasão. Agora, e talvez isso seja mais
grave, a criança chega à 4a série analfabeta.
E por que talvez isso seja mais grave? Porque, quando a criança repetia o ano – pois tínhamos
métodos que não estavam fundamentados em teorias psicológicas, psicolingüísticas nem
lingüísticas –ela não aprendia. Então ela repetia, mas, pelo menos, ficava claro para ela que
havia o "não sei". Agora, ela chega à 8a série, pensa que tem um nível de Ensino Fundamental e
não tem. Na minha opinião, os alunos, os pais desses alunos e a sociedade estão sendo
desrespeitados. Estamos iludindo-os ao dizer que essas crianças e esses jovens estão
aprendendo a ler e a escrever, quando na verdade não estão.
Tratemos agora da reinvenção da alfabetização. À primeira vista, essa reinvenção pode parecer
uma esperança, mas não é propriamente a solução do problema. Entendo-a como um
movimento que tenta recuperar a especificidade do processo de alfabetização. Agora, mais que
nunca, temos que ficar de olhos abertos para saber como esse movimento está sendo feito e em
que direção ele está sendo feito.
Considero que nós estamos vivendo, na área de alfabetização, um momento grave. Primeiro, por
causa do fracasso que aí está, gritante, diante de nós. Não é possível continuar dessa forma.
Segundo, porque estão aparecendo tentativas, em princípio muito bem-vindas, de recuperar a
especificidade da alfabetização, mas é bom vermos qual caminho vão tomar.
Vamos lembrar a conhecida "teoria da curvatura da vara", muito em voga nos anos 70. Se temos
uma vara encurvada e queremos que ela fique reta, curvamos a vara para o lado contrário para
que ela fique depois na posição vertical. Isso é uma metáfora para mostrar um movimento que
acontece com freqüência – se não sempre – na educação. Fomos para o lado do construtivismo,
nada de método etc, depois vimos que não é nada disso. A tendência pode ser curvar a vara
para o outro lado, à espera de que ela fique reta. Mas é preciso saber se é isso mesmo o que
teria de ser feito. É preciso saber o que significa esse “curvar para o outro lado”. Pode significar
voltar ao antigo – e é o que tem acontecido. As pessoas dizem: "Ah isso não funciona, e os
meninos não estão aprendendo a ler e a escrever, então vou voltar àquele meu velho método
silábico, alfabetizar na cartilha, porque tudo corria muito bem..."
Entretanto, voltar para o que já foi superado não significa que estamos avançando. Avançamos
quando acumulamos o que aprendemos com o passado, juntando a ele as novidades que o
presente traz. Estamos no momento crítico desse avanço. As pessoas estão insatisfeitas com o
construtivismo, as denúncias já estão sendo feitas e começam a surgir iniciativas no sentido de
corrigir essa situação.
Estamos na fase de reinvenção da alfabetização. A revista Educação do ano passado, cuja
chamada de capa é Guerra de Letras, diz: "Adversários do construtivismo garantem que o antigo
método fônico é mais eficaz no processo de alfabetização". Esse é um sinal que indica um
momento de reinvenção da alfabetização. Um outro sinal é um texto da revista Ensaio, de abril
de 2002, que traz um artigo com o seguinte título: "Construtivismo e alfabetização: um
casamento que não deu certo".
O que considero preocupante, porém, é que esse movimento está indo em direção ao método
fônico. Por quê? Para corrigir os problemas que estamos enfrentando, será que a solução é
voltar a usar esse método? Por que essa ênfase no fônico? Quando falo em método fônico,
refiro-me àquele método do 'casado', em que vinha uma letra de um lado e casava com a letra
de outro lado, como aquelas antigas cartilhas fônicas. Mas certamente não é disso que os
especialistas estão falando: o que se pretende é voltar a orientar as crianças na construção das
relações fonema / grafema.
Nos Estados Unidos houve também o movimento do construtivismo, que lá chamavam de whole
language, ou seja, língua total. Ele consistia em fazer o aluno conviver de maneira total com a
língua. Essa foi a tradução da orientação construtivista nos Estados Unidos, e os resultados
foram os mesmos: as crianças não estavam aprendendo a ler e escrever. O país se apavorou e
o governo central encarregou um grupo de cientistas de fazer um levantamento das pesquisas
produzidas até então no país a respeito da alfabetização, na tentativa de se descobrir como
resolver o problema. O relatório, chamado de Reading Panel, ou "Painel da Leitura", analisou
aproximadamente 1.800 pesquisas a respeito da alfabetização feitas naquele país. Os autores
chegaram à conclusão de que as crianças aprendem quando se trabalham sistematicamente as
relações fonema / grafema. Ou seja, é a aprendizagem do sistema de escrita, aquilo que chamo
alfabetização na sua especificidade. Houve, então, uma determinação que causou impacto:
todos teriam de ensinar o que eles chamam de fonics.
Se fôssemos traduzir para o português, seria alguma coisa como "fonismo", um substantivo.
Usamos fônico como adjetivo, mas não temos um substantivo para esse adjetivo fônico. O que
os especialistas americanos defenderam é que era necessário alfabetizar trabalhando-se as
relações fonema / grafema. Eles não estabelecem método, eles estabelecem os princípios. A
escola que busque o método, desde que esse método trabalhe a aquisição do sistema alfabético
e ortográfico, o chamado fonics. A tendência que se tem fortalecido naquele país é a de retomar
os trabalhos na linha das relações fonema / grafema. É a retomada da aquisição do sistema
alfabético e ortográfico pela criança nas suas relações com o sistema fonológico. Esta é a
tecnologia da alfabetização que eles pretendem aplicar.
E não foram só os EUA que fizeram isso. Na França aconteceu a mesma coisa. Neste pais, um
órgão chamado Observatório Nacional da Leitura fez um estudo da alfabetização e chegou à
conclusão de que é necessário trabalhar na linha do fônico, mas não no método antigo.
Inglaterra e Canadá também chegaram à mesma conclusão. É importante saber o que vem
acontecendo em outros países para não acharmos que estamos fazendo bobagem. Todos
estavam enfrentando esse problema, e os países que se preocuparam com essa questão foram
na mesma direção, qual seja, insistir na especificidade da alfabetização como aprendizado do
sistema alfabético / ortográfico e nas suas relações com o sistema fonológico.
No Congresso Nacional formou-se uma equipe, da qual não faço parte, para estudar o problema
da alfabetização, levando em conta a literatura científica e a experiência internacional sobre o
tema. Este fato já é um indicador muito significativo. Uma vez pronto o relatório dessa equipe,
haverá um ciclo de debates na Câmara dos Deputados, na segunda quinzena de agosto do
corrente ano, o que significa que teremos alguma novidade nessa área da alfabetização
No início de minha exposição, levantei algumas questões polêmicas, algumas preocupações e
dificuldades. Para terminar, proponho uma reflexão sobre o risco de reinventarmos a
alfabetização. Embora ela esteja mesmo precisando ser reinventada e seja preciso recuperar
sua especificidade, não podemos voltar ao que já foi superado. A mudança não deve ser um
retrocesso, mas um avanço.
*Professora emérita da UFMG.
Parte de palestra proferida na FAE UFMG, em 26/05/2003, na programação "Sexta na Pós".
Transcrição e edição de José Miguel Teixeira de Carvalho e Graça Paulino.
Referências bibliográficas
C
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in Revista Presença Pedagógica (Julho/Agosto 2003) retirado de
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SOARES, Magda. A reinvenção da alfabetização. Disponível em
http://www.meb.org.br/biblioteca/artigomagdasoares. Acesso em: 3 mar. 2006.